quinta-feira, 17 de abril de 2008

Com a alma mineira

César Saullo e Regis de Morais


DA OBRA

O encontro da fotografia com a poesia. Uma contemplando a outra. Ambas contemplando Minas Gerais e a vida de seus aldeões.
Idealizada por dois mineiros apaixonados por suas raízes, a obra traz com simplicidade aquilo que é simples por natureza: os quintais, o cheiro das panelas, os fogões a lenha, a lembrança da infância vivida, a música do carro-de-boi e, principalmente, a gente humilde e hospitaleira.


Prefácio

Minas
Rubem Alves

Minas é onde o tempo passa devagar.
O passado não quer partir, teima, quer ficar...
O César Saullo fotografou esse passado que não quer partir,
Minas Gerais. O comum é dizer “tirar uma foto”. Mas está errado.
O olhar do fotógrafo não tira nada; ele põe... Assim, descansando meus olhos pelos pedaços de Minas, lembrei-me de um verso que a Cecília escreveu para seu avô, encantada... “Tudo em ti era uma ausência que demorava. Uma despedida pronta a cumprir-se...”
Foi o que eu disse baixinho para Minas Gerais que eu via: tudo em ti é
uma ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se.
Fotografar é muito perigoso. Talvez o fotógrafo não saiba, pensa estar
fotografando o carro de boi, o fogão de lenha, a preta de olhos
vermelhos, a casa arruinada... Não sabe que está fotografando a sua
própria alma. Não fotografamos o que vemos. Fotografamos o que
somos. Toda fotografia é auto-retrato, pedaço do corpo do fotógrafo:
“É assim que eu sou”, ele está dizendo. Ver fotografias é antropofagia,
eucaristia, comer, com olhos, o corpo do fotógrafo. Os olhos do Saullo:
fotografam o tempo que não quer partir, os olhos que sofrem de despedidas. Olhos sobre os quais Rilke falou: “Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?”. Fotografias de um mundo que se despede.
Fotografias para adiar a partida. Fotografias-feitiçaria, para enganar o tempo, para imobilizar o tempo, para impedir que ele passe, para que o momento se torne eternidade.
Passa Quatro, Minas: a despedida está no nome: passa, passa, passa, passa...
O homem na janela mora no lugar que passa. Ele sorri para o fotógrafo.
Faz pose. É impossível não fazer pose sabendo-se objeto de uma
câmera fotográfica. Sorri inocentemente. Pensa que o fotógrafo o está
fotografando. Não sabe que ele é apenas um foco em torno do qual gira
o mundo invisível, um universo que se despede...
O fotógrafo fotografa a despedida.
Há também os olhos daqueles que verão as fotografias. Os vedores são
de dois tipos. Há aqueles que vêem o homem que sorri na janela e vêem também o mundo invisível que gira em torno dele. Eu, que sou de Minas, olho e sei. Sei porque já vi. Quem sabe, entende. Mas aqueles que nunca viram, vêem sem entender. Só vêem o homem que sorri na janela. Para se ver o invisível é preciso ser poeta. Mas nem todos o são.
O poeta vem, então, em seu socorro. Poetas são fotógrafos do invisível.
Fotografam o tempo que passa, para que não passe. Poemas são
encantações para agarrar o eterno que mora no tempo que passa.
O Regis de Morais é poeta... Em Minas nascem os poetas...
Na fotografia, o que se vê não se pode comparar àquilo que não se vê.
O poeta invoca fantasmas. Esse livro está cheio de fantasmas: o cheiro da casa em ruínas, o barulho do fogo que crepita, o cantar de um galo ao longe, a música do carro de boi...
O poeta fala nos silêncios do visível. Põe palavras nos seus interstícios.
Faz o silêncio cantar: para salvar do silêncio aqueles que nunca haviam
visto, e para criar comunhão entre aqueles que viram. As palavras do poeta fazem os que viram e os que não viram cantar juntos...
toda poesia produz música. “As flores são sonhos do chão!” Quem diria
que na terra negra vivem pétalas coloridas? Em Minas, o chão sonha...
“Silvos de locomotivas negras”... Mas não há locomotivas negras na fotografia da estação. Só uma casa. Quem nunca viu, como saberia?
Mas o poeta fala, e na fotografia silenciosa se ouve o grito rouco da
locomotiva que avança pela noite soltando lágrimas de fogo.
Talvez ela soltasse lágrimas de fogo por saber que ela era uma despedida pronta a cumprir-se...
Assim, o seu grito rouco se explica. É choro.
O mistério da negra de olhos vermelhos. Por que vermelhos?
Talvez por sua proximidade com as brasas do fogão de lenha...
Os negros de outros tempos eram diferentes. Eram eles que, nas
manhãs, acordavam o fogo que dormia sobre as cinzas do borralho.
Eram diferentes porque sua alma morava em outros lugares.
“... Os corpos naqueles águas, a alma por longes terras”, dizia a Cecília. Aquele é o rosto de uma mulher que estava lá – se não estivesse, como fotografá-la? Mas está lá sem estar, exilada, a alma vagando por terras das quais ela não tem mais memória.
Ah! Quem nunca viu, como poderia adivinhar? Aquele tronco de
madeira horizontal, abandonado... Que palavras escrever nele?
O poeta, que viu, diz “sal”... e, de repente, ao redor do tronco
abandonado, aparecem vacas lambendo o cocho pachorrentamente.
Sem pressa. O tempo de Minas é o tempo das vacas...
O poeta ouve o que as coisas dizem. Sua fala é a voz das coisas.
E as coisas se transformam em poesia. Entram em mim, fazem amor comigo, entram em minha carne, e um novo evangelho se anuncia: “... e a fotografia se faz carne”.
Agora elas não mais estão coladas às páginas, as fotografias. Estão vivas, moram dentro de mim. E a prova de que se fizeram minha carne é que sinto saudade. Ah! Como eu gostaria de voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima a ao mesmo tempo acabada de nascer. Sinto que sou de lá. Estou encantado... Adivinho que sou de um outro mundo.
“É a ‘vida anterior’ que retorna”... Octávio Paz entenderia.
O homem que sorri na janela, como todos, vai passar; e a janela vai apodrecer. A casa vai cair, o forno e o fogão serão abandonados, o carro de boi será encostado e não mais cantará...
Mas os ipês voltarão sempre. Hai-kai, acho que de Bashô:
“Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem”.
Hai-kai mineiro: “Nas saudades de Minas os ipês florescem...”.
O ipê é a eternidade amarela das Minas Gerais que parte sempre e volta sempre. E enquanto os ipês não florescem, permanecem as
fotografias do César Saullo e os poemas do Regis de Morais...


SOBRE OS AUTORES

César Saullo é mineiro de Passa Quatro, nascido em 1952.
Desde cedo fez de sua alma uma “câmara escura” que acolhia belos instantâneos das paisagens e gentes de Minas Gerais. Depois, penetrou os segredos da fotografia maquínica, descobrindo-se uma espécie de poeta do olhar.
Formado em Turismo, fotógrafo e empresário, segue tendo na fotografia algo como um sentido essencial de viver. Tem feito exposições fotográficas, possui vários trabalhos publicados em livros, revistas e jornais. Todo o seu acervo fotográfico encontra-se no Hotel Pousada São Rafael, em Passa Quatro.
Em 2001, passou a ter contato mais próximo e mutuamente frutífero com Regis de Morais – poeta do verso.

Regis de Morais é mineiro, nasceu em Passa Quatro, em 1940.
Desde então, vive um caso de amor com a beleza de sua terra e adjacências.
Não se lembra de quando a poesia estourou pelo seu ser; mas precisou aprender com os grandes mestres a técnica poética.
Formado em Filosofia Social, Doutor em Educação e Livre Docente em Filosofia da Educação, trabalhou em três grandes universidades do Estado de São Paulo.
Em suas freqüentes visitas a Passa Quatro, iniciou fecunda convivência com César Saullo (o poeta do olhar) e seus familiares.
Tem livros muito bem acolhidos pela crítica nas áreas filosófica, sociológica e literária.

FICHA TÉCNICA
Autores: César Saullo e Regis de Morais
Edição:
Data de Publicação: 2008
ISBN: 978-85-99146-46-0
Tamanho: 21 x 21 cm
Nº. de páginas: 80
Gênero: Fotografia / Poesia
Editoras: Carlini&Caniato Editorial
Preço: R$ 48,00
Contatos:
(65)3023-5714/5715
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